Por Cefas Carvalho
Aportou na praia cansado, ofegante, após longa e difícil navegação. Saboreou os pés descalços na areia molhada e olhou em volta. Como sabia, como sempre soube, a ilha estava absolutamente deserta. Afastou a jangada da praia e observou-a perder-se no oceano, não mais precisava dela, sua viagem era só de ida. Contemplou a praia, a ilha, a vegetação, as árvores, imaginou-se entre os animais, livrando-se de insetos, tendo de improvisar uma cabana com pedaços de pau e cipós e percebeu que poucas vezes na vida estivera tão feliz. Na primeira noite dormiu na relva, sob a música suave dos mosquitos que tentaram dilacerar sua carne. Não importava, estava feliz. Com o passar dos dias, construiu uma cabana improvisada para se proteger das chuvas fortes que viriam e de possíveis animais selvagens. Descobriu um pequeno córrego, onde a água era límpida e cristalina. Se alimentava de frutas e pequenos animais, fazia fogo friccionando varetas, como aprendera quando criança. Decidiu não contar o tempo e o tempo se passou sem que se desse conta. Decidiu não se preocupar com a aparência (por que o faria?) e passou a andar nu cada vez mais e a não cortar cabelo, barba ou bigode. De vez em quando cantava ou assobiava uma velha canção, dos tempos em que ainda vivia no mundo (no inferno?) apenas para passar o tempo, embora tivesse perdido a noção do que era o tempo.
Os dias se passavam, as luas traziam as noites, ele dormia, acostumado com os mosquitos, acordava com o sol no dia seguinte e recomeçava sua vida baseada em se alimentar e se proteger das chuvas. Estava no paraíso. Ou, assim pensava. E o tempo, sempre implacável, continuava a trabalhar sob a ilha, sob seu corpo e sua alma, e subitamente, como uma pedra que cai sobre a cabeça, ele percebeu que não estava totalmente feliz, não estava totalmente satisfeito com a vida que levava e que ali talvez não fosse o paraíso. Faltava algo. Inquietou-se durante dias para descobrir o que poderia lhe faltar, posto que abdicara do mundo e das felicidades ilusórias.
Um dia, percebeu o que lhe faltava. Faltava a dor. Não se vive sem dor, não se pode ser feliz sem se sentir dor. A vida sem dor é ilusória, descobriu ele, entre o alívio e o desespero. Começou a se impingir dor física. Com uma pedra, cortou-se na barriga. Fez talhos nas pernas, deixou sangrar as feridas e espalhou areia nelas. Sentiu dor, mas não como queria. Não como era para se sentir dor. Tomou uma decisão. Com a faca de sílex que improvisou, arrancou de si uma costela. Achou que fosse morrer vendo o mar de sangue na areia da praia e os ossos fraturados. Não importava. Talvez fosse melhor morrer. Dormiu então, aquele sonho entre a febre e o devaneio. Dormiu acreditando que não mais acordaria. Mas, despertou, não soube quanto tempo depois, e ao acordar, viu diante de si, uma mulher, sentada com as mãos abraçando os joelhos, observando-o atentamente. Não demorou a perceber que ela nascera de sua costela e que em sua pele uma imensa cicatriz se fazia ver. A mulher sorriu. Ele então percebeu que a amaria. E que, por esta razão, começaria a sofrer. Sentiria dor. Seria arrancado do paraíso. Para sempre. E sorriu, tremendo de felicidade.
__________________________
“Sabia que sua imediata obrigação era o sonho”
(Jorge Luis Borges em As ruínas circulares)
Aportou na praia cansado, ofegante, após longa e difícil navegação. Saboreou os pés descalços na areia molhada e olhou em volta. Como sabia, como sempre soube, a ilha estava absolutamente deserta. Afastou a jangada da praia e observou-a perder-se no oceano, não mais precisava dela, sua viagem era só de ida. Contemplou a praia, a ilha, a vegetação, as árvores, imaginou-se entre os animais, livrando-se de insetos, tendo de improvisar uma cabana com pedaços de pau e cipós e percebeu que poucas vezes na vida estivera tão feliz. Na primeira noite dormiu na relva, sob a música suave dos mosquitos que tentaram dilacerar sua carne. Não importava, estava feliz. Com o passar dos dias, construiu uma cabana improvisada para se proteger das chuvas fortes que viriam e de possíveis animais selvagens. Descobriu um pequeno córrego, onde a água era límpida e cristalina. Se alimentava de frutas e pequenos animais, fazia fogo friccionando varetas, como aprendera quando criança. Decidiu não contar o tempo e o tempo se passou sem que se desse conta. Decidiu não se preocupar com a aparência (por que o faria?) e passou a andar nu cada vez mais e a não cortar cabelo, barba ou bigode. De vez em quando cantava ou assobiava uma velha canção, dos tempos em que ainda vivia no mundo (no inferno?) apenas para passar o tempo, embora tivesse perdido a noção do que era o tempo.
Os dias se passavam, as luas traziam as noites, ele dormia, acostumado com os mosquitos, acordava com o sol no dia seguinte e recomeçava sua vida baseada em se alimentar e se proteger das chuvas. Estava no paraíso. Ou, assim pensava. E o tempo, sempre implacável, continuava a trabalhar sob a ilha, sob seu corpo e sua alma, e subitamente, como uma pedra que cai sobre a cabeça, ele percebeu que não estava totalmente feliz, não estava totalmente satisfeito com a vida que levava e que ali talvez não fosse o paraíso. Faltava algo. Inquietou-se durante dias para descobrir o que poderia lhe faltar, posto que abdicara do mundo e das felicidades ilusórias.
Um dia, percebeu o que lhe faltava. Faltava a dor. Não se vive sem dor, não se pode ser feliz sem se sentir dor. A vida sem dor é ilusória, descobriu ele, entre o alívio e o desespero. Começou a se impingir dor física. Com uma pedra, cortou-se na barriga. Fez talhos nas pernas, deixou sangrar as feridas e espalhou areia nelas. Sentiu dor, mas não como queria. Não como era para se sentir dor. Tomou uma decisão. Com a faca de sílex que improvisou, arrancou de si uma costela. Achou que fosse morrer vendo o mar de sangue na areia da praia e os ossos fraturados. Não importava. Talvez fosse melhor morrer. Dormiu então, aquele sonho entre a febre e o devaneio. Dormiu acreditando que não mais acordaria. Mas, despertou, não soube quanto tempo depois, e ao acordar, viu diante de si, uma mulher, sentada com as mãos abraçando os joelhos, observando-o atentamente. Não demorou a perceber que ela nascera de sua costela e que em sua pele uma imensa cicatriz se fazia ver. A mulher sorriu. Ele então percebeu que a amaria. E que, por esta razão, começaria a sofrer. Sentiria dor. Seria arrancado do paraíso. Para sempre. E sorriu, tremendo de felicidade.
__________________________
Do livro Encontos & Desencontos (Cefas Carvalho - Natal (RN): Mekong, 2009)
Cefas Carvalho é jornalista, poeta e escritor. Publicou os romances Ponto de Fuga, Três e o livro de poesias Reinvenções, além de diversos folhetos de cordel. Faz parte da coordenação do Concurso de Poesia Zila Mamede e participa do grupo literário Verborrágicos. Foi menção honrosa no Concurso Câmara Cascudo (Funcarte) por duas vezes, com os romances inéditos Carla Lescaut e Os Puxadores de Piano, este último também finalista do prêmio nacional Sesc de Literatura.
Comentários