27 agosto 2012

INCOMODAMENTE SIMPLES



E eis que certo homem,
[que poderia ser eu, você, ou qualquer um que se diz cristão]
intérprete da Lei, se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe:

- Mestre, que farei para herdar a vida eterna?

Então, Jesus lhe perguntou: "Que está escrito na Lei? Como interpretas?" A isto ele respondeu:

- Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma,
de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e:
Amarás o teu próximo como a ti mesmo.

Então, Jesus lhe disse: "Respondeste corretamente; faze isto e viverás."

Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: "Quem é o meu próximo?"

Jesus prosseguiu, dizendo:
Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto.
Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de largo.
Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, também passou de largo.
Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele. No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar. 
"Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?" Respondeu-lhe o intérprete da Lei: "O que usou de misericórdia para com ele." Então, lhe disse:

- Vai e procede tu de igual modo.

(Evangelho segundo Lucas 10:25-37 - ênfase minha)

19 agosto 2012

QUASE O PARAÍSO

Por Cefas Carvalho

“Sabia que sua imediata obrigação era o sonho”
(Jorge Luis Borges em As ruínas circulares)


Aportou na praia cansado, ofegante, após longa e difícil navegação. Saboreou os pés descalços na areia molhada e olhou em volta. Como sabia, como sempre soube, a ilha estava absolutamente deserta. Afastou a jangada da praia e observou-a perder-se no oceano, não mais precisava dela, sua viagem era só de ida. Contemplou a praia, a ilha, a vegetação, as árvores, imaginou-se entre os animais, livrando-se de insetos, tendo de improvisar uma cabana com pedaços de pau e cipós e percebeu que poucas vezes na vida estivera tão feliz. Na primeira noite dormiu na relva, sob a música suave dos mosquitos que tentaram dilacerar sua carne. Não importava, estava feliz. Com o passar dos dias, construiu uma cabana improvisada para se proteger das chuvas fortes que viriam e de possíveis animais selvagens. Descobriu um pequeno córrego, onde a água era límpida e cristalina. Se alimentava de frutas e pequenos animais, fazia fogo friccionando varetas, como aprendera quando criança. Decidiu não contar o tempo e o tempo se passou sem que se desse conta. Decidiu não se preocupar com a aparência (por que o faria?) e passou a andar nu cada vez mais e a não cortar cabelo, barba ou bigode. De vez em quando cantava ou assobiava uma velha canção, dos tempos em que ainda vivia no mundo (no inferno?) apenas para passar o tempo, embora tivesse perdido a noção do que era o tempo.

Os dias se passavam, as luas traziam as noites, ele dormia, acostumado com os mosquitos, acordava com o sol no dia seguinte e recomeçava sua vida baseada em se alimentar e se proteger das chuvas. Estava no paraíso. Ou, assim pensava. E o tempo, sempre implacável, continuava a trabalhar sob a ilha, sob seu corpo e sua alma, e subitamente, como uma pedra que cai sobre a cabeça, ele percebeu que não estava totalmente feliz, não estava totalmente satisfeito com a vida que levava e que ali talvez não fosse o paraíso. Faltava algo. Inquietou-se durante dias para descobrir o que poderia lhe faltar, posto que abdicara do mundo e das felicidades ilusórias.

Um dia, percebeu o que lhe faltava. Faltava a dor. Não se vive sem dor, não se pode ser feliz sem se sentir dor. A vida sem dor é ilusória, descobriu ele, entre o alívio e o desespero. Começou a se impingir dor física. Com uma pedra, cortou-se na barriga. Fez talhos nas pernas, deixou sangrar as feridas e espalhou areia nelas. Sentiu dor, mas não como queria. Não como era para se sentir dor. Tomou uma decisão. Com a faca de sílex que improvisou, arrancou de si uma costela. Achou que fosse morrer vendo o mar de sangue na areia da praia e os ossos fraturados. Não importava. Talvez fosse melhor morrer. Dormiu então, aquele sonho entre a febre e o devaneio. Dormiu acreditando que não mais acordaria. Mas, despertou, não soube quanto tempo depois, e ao acordar, viu diante de si, uma mulher, sentada com as mãos abraçando os joelhos, observando-o atentamente. Não demorou a perceber que ela nascera de sua costela e que em sua pele uma imensa cicatriz se fazia ver. A mulher sorriu. Ele então percebeu que a amaria. E que, por esta razão, começaria a sofrer. Sentiria dor. Seria arrancado do paraíso. Para sempre. E sorriu, tremendo de felicidade.
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Do livro Encontos & Desencontos (Cefas Carvalho - Natal (RN): Mekong, 2009)
Cefas Carvalho é jornalista, poeta e escritor. Publicou os romances Ponto de Fuga, Três e o livro de poesias Reinvenções, além de diversos folhetos de cordel. Faz parte da coordenação do Concurso de Poesia Zila Mamede e participa do grupo literário Verborrágicos. Foi menção honrosa no Concurso Câmara Cascudo (Funcarte) por duas vezes, com os romances inéditos Carla Lescaut e Os Puxadores de Piano, este último também finalista do prêmio nacional Sesc de Literatura. 

17 agosto 2012

ESCATOLOGIA APOCALÍPTICA E ESCATOLOGIA SAPIENCIAL

Por John Dominic Crossan

A escatologia apocalíptica anuncia o apocalipse (palavra grega que significa “revelação”) da intervenção divina iminente e cataclísmica, para restaurar a paz e a justiça de um mundo desordenado. Se depois disso existirá o paraíso na terra ou a terra no paraíso, não fica muito claro, mas eles, os maus, desaparecerão para sempre e nós, os abençoados, estaremos no comando sob as ordens de Deus. Exemplos da promessa reveladora divina da escatologia apocalíptica são, no mundo antigo, João, de Patmos, na Grécia, e no mundo moderno, David Koresh, de Waco, no Texas.

A escatologia sapiencial, por outro lado, enfatiza a sapiência (palavra latina que significa “sabedoria”) de como se deve viver hoje, aqui e agora, de forma que o poder presente de Deus seja convenientemente óbvio para todos. Exemplos do desafio de um estilo de vida radical da escatologia sapiencial são, no mundo antigo, Diógenes, na Grécia, vivendo em seu barril, e no mundo moderno, Gandhi, na Índia, vivendo uma vida de não-violência.

A escatologia apocalíptica é a negação do mundo pela ênfase na iminente intervenção divina: nós esperamos pelos atos de Deus; a escatologia sapiencial é a negação do mundo pela ênfase na imitação divina imediata: Deus espera pelos nossos atos. A primeira é a mensagem de João Batista; a última, a de Jesus.
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Trecho de "O Essencial de Jesus" (John Dominic Crossan - São Paulo: Jardim dos Livros, 2008) 
John Dominic Crossan é professor de estudos bíblicos da DePaul University, em Chicago. Ele é autor de muitos best sellers, incluindo Jesus Histórico, Jesus: uma Biografia Revolucionária e The Cross that Spoke, vencedor do American Academy of Religion Award for Excelence.