A DIVINA HUMANIZAÇÃO DE CRISTO

A Busca pelo Jesus Histórico e a Divindade de Cristo


Por Alan Capriles

A chamada busca pelo Jesus histórico é o esforço acadêmico de se analisar a vida de Cristo somente pela perspectiva histórica, como um simples homem, ou seja, despido de qualquer suposto mito que o identifique como Deus. Neste sentido, os evangelhos e demais escritos do Novo Testamento necessitam ser examinados com extrema cautela, uma vez que qualquer milagre, especialmente o da ressurreição, não pode ser avaliado (e muito menos abalizado) segundo os parâmetros históricos.

Não se trata de má vontade dos acadêmicos, mas do simples fato de que o sobrenatural não pode ser comprovado por metodologia científica. Além disso, muitos estudiosos asseguram que os evangelhos foram escritos de 35 a 65 anos após a morte de Jesus, o que aumentaria a probabilidade de que seus autores não tenham sido testemunhas oculares dos relatos que escreveram. Para um historiador, o depoimento de alguém que presenciou o fato relatado é de grande relevância histórica. Mas, segundo supõem alguns pesquisadores, os evangelhos foram escritos por pessoas que não conheceram Jesus pessoalmente. Como se não bastasse, afirmam que existem discrepâncias na leitura paralela dos evangelhos, ou seja, que surgem divergências quando comparamos a ordem e os detalhes descritos da vida de Jesus em cada evangelho.[1]

Sendo assim, a pesquisa sobre o Jesus histórico consiste, principalmente, numa tentativa de se retirar supostas camadas de mito religioso que teriam sido acrescentadas sobre a pessoa do Nazareno. O assunto é extenso e polêmico, mas acho necessário apresenta-lo resumidamente a seguir, para somente depois revelar o impacto que tais estudos causaram em mim.

A chamada primeira busca pelo Jesus histórico se deu em meados do século XVIII, motivada pelo Iluminismo, o movimento europeu que exaltava o uso da razão como a única forma de se chegar à verdade. Muitos eruditos começaram a reescrever a vida de Jesus sob uma perspectiva extremamente racional (leia-se: que nega sua divindade), concluindo que o Nazareno poderia ter sido apenas um político mal sucedido que tencionava ser o rei de Israel, ou talvez um curandeiro que fazia uso de práticas terapêuticas, ou apenas um mito criado a partir de narrativas do Antigo Testamento, ou simplesmente uma lenda, baseada em pouquíssimo material histórico.

Tantas opiniões divergentes acerca de quem foi Jesus acabaram resultando em ceticismo quanto à possibilidade de se conhecê-lo por uma perspectiva histórica. Em 1911, Albert Schweitzer publicou sua famosa obra sobre o assunto, A Busca do Jesus Histórico, na qual demonstrou que os pesquisadores haviam falhado em suas biografias de Jesus porque cada autor projetava nele o próprio ideal ético que mais almejava. A despeito disso, Schweitzer também aventou sua hipótese acerca de quem foi o Nazareno: apenas mais um profeta judeu apocalíptico, que a princípio anunciava a vinda de uma figura escatológica, o Filho do Homem, o qual desceria do céu para estabelecer o reino de Deus na terra, mas que depois teria mudado de ideia, acreditando ser ele mesmo esse Filho do Homem. O teólogo Rudolf Bultmann foi ainda mais pessimista quanto à busca pela verdade histórica. Segundo ele, a única coisa relevante no aspecto da história é que Jesus existiu. Qualquer tentativa de se saber o que realmente aconteceu seria uma tarefa impossível do ponto de vista metodológico, e desnecessária do ponto de vista teológico. Bultmann afirmava que o importante é o Cristo da fé, ressuscitado e vivo no coração de cada crente, o qual se baseava em tradições acerca de Jesus que jamais poderiam ser historicamente comprovadas. Sendo assim, o assunto parecia definitivamente morto e enterrado.

Mas eis que, após algumas décadas de compreensível silêncio, houve uma ressurreição na busca pelo Jesus histórico. Reavivados por uma nova pergunta, os pesquisadores desejavam então saber se o Querigma (a exaltação fundada na cruz e na ressurreição) teria alguma base na pregação de Jesus, ou seja, se determinados ditos e ações provinham mesmo dele ou se eram visões posteriores da Igreja. Talvez possamos estabelecer precisamente o início dessa segunda busca em 23 de Outubro de 1953, quando o professor Ernest Käsemann, na conferência denominada O Problema do Jesus Histórico, defendeu a criação de uma teologia baseada na realidade histórica sobre o que Jesus de fato ensinou. Ele argumentou que isso não somente era necessário, mas que já era possível, devido aos avanços nas áreas da Arqueologia, História, Antropologia e Filosofia. Abandonava-se o interesse pela cronologia dos eventos e da publicação de novas biografias de Jesus, mas mantinha-se o ceticismo em relação aos milagres – uma herança do Iluminismo. A partir de então o foco seria determinar quais ensinamentos de Cristo eram autênticos ou não. Os parâmetros para essa pesquisa começavam a consolidar-se, resultando em um boom no interesse pelo Jesus histórico a partir do final do século XX.

Atualmente experimentamos o que se pode chamar de terceira busca, na qual Jesus é reinserido em seu contexto judaico, possibilitando aos judeus perceberem-no como parte de sua história. O interesse histórico-social substituiu o teológico, razão pela qual agora se admite a investigação de fontes não canônicas e até heréticas, tais como o apócrifo Evangelho de Tomé. O maior exemplo desse empenho se deu na formação do The Jesus Seminar, projeto norte-americano iniciado em 1985, no qual pesquisadores passaram a reunir-se duas vezes ao ano para avaliarem Jesus segundo os modernos métodos da pesquisa crítica e histórica.[2] Em sua primeira fase os participantes deveriam votar em quais ditos seriam autênticos ou não, tratando a questão como se ela pudesse ser resolvida democraticamente. Essa polêmica votação estabeleceu que pouquíssimos ditos atribuídos a Cristo nos evangelhos, incluindo o de Tomé, seriam provavelmente autênticos. Apenas quinze, para ser mais exato! Isso causou desconforto para os pesquisadores europeus, os quais discordam deste método, e indignação para muitos teólogos que se perguntam de qual Jesus estaríamos falando.

As conclusões mais recentes acerca do Jesus histórico estão amplamente disponíveis em língua portuguesa. Obras de pesquisadores conceituados, como Geza Vermes, John Dominic Crossam e John Paul Meier podem ser encontradas com certa facilidade nas melhores livrarias brasileiras. O ex-pastor evangélico (agora agnóstico) Bart Ehrman popularizou ainda mais o assunto, escrevendo livros com títulos sensacionalistas, tais como “O que Jesus disse, o que Jesus não disse” e “Como Jesus se tornou Deus”. Neste último, Ehrman escancara o que até então estava nas entrelinhas dos demais autores, ou para a maioria deles: Deus não se fez homem em Jesus, mas o próprio homem é que teria elevado Jesus ao status de Deus.

Particularmente, o estudo do Jesus histórico não me levou a essa conclusão. Na verdade, consolidou ainda mais a minha fé em Cristo. E ninguém pode me acusar de leviandade, pois não somente li (e tenho) todos os livros de Ehrman, com também li (e tenho) a maioria dos livros de Crossan, Vermes, Schweitzer e as principais obras de autores ainda não mencionados, tais como Reza Aslan e André Leonardo Chevitarese. Este último merece especial consideração, por ser o historiador brasileiro que mais tem incentivado o estudo do Jesus histórico em nosso país. Tive o privilégio de participar de alguns cursos ministrados na UFRJ por excelentes professores ligados a Chevitarese, tais como Daniel Justi, Juliana Cavalcanti e Lair Amaro Faria.[3] Participei desses cursos não como pastor ou teólogo, mas com a sincera disposição de um aprendiz.

E aprendi muito, reconheço. Tanto nas aulas, quanto nos livros. Aprendi, principalmente, o que os eruditos dizem acerca do Jesus histórico e que venho listar a seguir como resumo do pensamento atual sobre o assunto:
- Jesus teria nascido, crescido e passado a maior parte de sua vida em Nazaré, uma aldeia insignificante, que sequer aparecia nos mapas, cuja historicidade chegou a ser questionada, mas que foi comprovada por meio da arqueologia;
- Jesus teria crescido sendo chamado de filho da prostituição, pois ninguém acreditaria na história de que sua mãe foi engravidada pelo Espírito Santo;
- Jesus teria sido analfabeto, como o restante dos camponeses pobres que moravam em Nazaré, pois seria praticamente impossível que ele aprendesse a ler morando naquela pequena e desprezível aldeia, onde sequer haveria alguém para ensinar as letras;
- Jesus teria sido pedreiro (ofício ainda menos rentável que o de carpinteiro) e possivelmente tenha trabalhado em Séforis, cidade greco-romana mais próxima de Nazaré e que estava sendo reconstruída pelos romanos no período da vida adulta de Jesus;
- Jesus teria sido um dos discípulos de João Batista, dando continuidade ao ministério deste após sua morte, mas com sua própria mensagem;
- Jesus teria feito seu ministério público tal como um mendigo, ou filósofo cínico, que pregava perambulando pelas aldeias sem ter onde dormir;
- Jesus teria sido apenas mais um dentre os vários pregadores apocalípticos judeus que surgiram antes e depois dele;
- Jesus teria tido menos seguidores do que se pensa e o número de apóstolos talvez se resumisse a seis ou sete – doze teria sido uma invenção posterior da igreja;
- Jesus não teria realizado milagres de qualquer natureza, mas era reconhecido pelo povo como curandeiro e exorcista;
- Jesus não teria desejado morrer na cruz para salvar ninguém, mas esperava por uma intervenção divina apocalíptica que não ocorreu;
- Jesus teria sido crucificado por causa de sedição - ou seja, pela suspeita de que liderava um movimento contrário ao imperialismo romano - e não por causa de seu discurso religioso;
- Jesus não teria sido sepultado, mas lançado numa vala comum, como os demais condenados à crucificação, e seu corpo logo teria sido comido por animais;
- Jesus não teria ressuscitado.

Por favor, examine mais uma vez a listagem acima. Não é fantástico que alguém tão medíocre assim, como se revela Jesus nos parâmetros históricos, tenha se tornado o personagem mais famoso e querido de toda a história? 

Seria mesmo possível que tudo mais quanto se lê no Novo Testamento acerca de Cristo tenha sido inventado? Como poderia tamanha mentira ir adiante, uma vez que muitas pessoas que conheceram Jesus ainda estavam vivas enquanto Paulo pregava e escrevia suas epístolas sobre Cristo? E por que alguém tão insignificante teria sido tão popularmente comentado a ponto de sua memória ser preservada numa tradição oral que deu origem aos evangelhos? E por que os evangelhos inventariam fatos que complicariam sua credibilidade, tal como um dos apóstolos tê-lo traído, ou sua ressurreição ter primeiro sido atestada por mulheres? E por que os discípulos de Cristo dariam sua vida por algo que soubessem não ser verdade?

Enquanto os pesquisadores do Jesus histórico buscam, de todas as formas, comprovar a humana divinização de Jesus, para mim parece claro que, quanto mais frágil e humano ele se revela, tanto maior se torna o assombro, o milagre e a certeza de sua divindade.

Sinceramente, esse foi o resultado a que tais estudos me levaram. Agora percebo, impactado, que há um propósito divino na mais humilde possível humanização de Cristo, bem como na atual redescoberta desse Jesus frágil, desse Jesus homem. A saber: a nossa própria e definitiva conversão a ele.

Alan Capriles

Notas

[1] A respeito das discrepâncias nos evangelhos, confira meu artigo intitulado As Divergências nos Evangelhos Sinóticos.


[3] Lair Amaro Faria é autor da excelente obra “Quem vos ouve, ouve a mim: oralidade e memória nos cristianismos originários”, a qual pode ser encomendada pelo site da editora Kline: http://www.klineeditora.com/catalogos.html

Referências bibliográficas

CHEVITARESE, André L. & FUNARI, Pedro Paulo. Jesus Histórico: Uma Brevíssima Introdução. Rio de Janeiro: Kline Editora, 2012.

THEISSEN, Gerd & MERZ, Annette. O Jesus Histórico: um Manual. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

ASLAN, Reza. Zelota: A Vida e a Época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

Comentários

Matheus Moura disse…
Pastor Alan graça e paz!
Quero agradecer a Deus por sua vida, que com muita sabedoria ensina a palavra de Deus. O senhor é um homem cheio do Espírito Santo e tenho aprendido muito com o senhor. Eu também sou pastor e missionário na Bolívia e sempre acompanho as suas mensagens e vídeos. Que o nosso Senhor Jesus possa te fortalecer e abençoar a cada dia mais. Abraços Matheus.