24 novembro 2012

JESUS EXISTIU?


Por Bart D. Ehrman

Em uma sociedade em que as pessoas ainda afirmam que o Holocausto não aconteceu, e em que há afirmações contundentes de que o presidente americano é, na verdade, um muçulmano nascido em solo estrangeiro, é alguma surpresa aprender que a maior figura da história da Civilização Ocidental, o homem sobre quem foi construída a mais poderosa e influente instituição social, política, econômica, cultural e religiosa do mundo – a Igreja Cristã – o homem que é adorado, literalmente, por bilhões de pessoas hoje – é alguma surpresa ouvir que Jesus nunca sequer existiu?

Essa é uma afirmação feita por um grupo pequeno mas crescente de escritores, blogueiros e viciados em internet que chamam a si mesmos de mitologistas. Esse grupo extraordinariamente vociferante de negativistas sustenta que Jesus é um mito inventado para propósitos nefastos (ou altruístas) pelos primeiros cristãos, que modelaram seu salvador através da linhagem divina de um homem pagão que também nasceu de uma virgem em 25 de dezembro, que também fez milagres, morreu como expiação pelo pecado e foi, então, ressuscitado dos mortos.

Poucos desses mitologistas são realmente estudiosos formados em História Antiga, religião, estudos bíblicos ou qualquer campo similar, sem falar nas línguas antigas geralmente estudadas por quem quer dizer alguma coisa com algum grau de autoridade sobre um professor judeu que (supostamente) viveu na Palestina do primeiro século. Existem algumas exceções: das centenas – milhares? – de mitologistas, dois (que eu saiba) realmente têm doutorado e credenciais em áreas relevantes de estudo. Mas mesmo tendo isso em conta, não há um único mitologista que ensina Cristianismo Primitivo ou até mesmo as civilizações da Antiguidade Clássica em alguma instituição de ensino superior respeitada no mundo ocidental. E não é de se admirar o porquê. Essas opiniões são tão radicais e tão pouco convincentes para 99,99 por cento dos verdadeiros especialistas daquela área como seria para eles pegarem uma vaga de emprego em um respeitado departamento de Religião como criacionistas ou como defensores da formação do mundo em seis dias num departamento de Biologia.

Por que, então, o movimento mitologista vem crescendo, com defensores tão confiantes de suas opiniões e contestações – mesmo bem articuladas – em sua radical denúncia da ideia de que Jesus realmente existiu? É, em grande parte, porque esses que negam [a existência de] Jesus são os mesmos que denunciam a religião – um tipo de pessoa que agora está muito na moda. E que melhor maneira de caluniar a visão religiosa da grande maioria das pessoas do mundo ocidental, que se mantém, apesar de tudo, predominantemente cristã, do que a alegação de que o fundador histórico de sua religião era, na verdade, o produto da imaginação de seus seguidores?

Mas a visão dos fundadores era diferente. A realidade – triste ou salutar – é que Jesus era real. E este é o tema de meu novo livro, “Jesus existiu?”.

É verdade que Jesus não é mencionado em nenhuma fonte romana de sua época. Mas isso não deveria ser contabilizado para se negar sua existência, uma vez que essas mesmas fontes quase não mencionam ninguém de sua época e lugar. Nem mesmo o famoso historiador judeu, Josefo, ou até, mais particularmente, a figura mais poderosa e importante de sua época, Pôncio Pilatos.

Também é verdade que as nossas melhores fontes sobre Jesus, os Evangelhos, estão cheias de problemas. Eles foram escritos décadas após a vida de Jesus por autores tendenciosos que estão em desacordo uns com os outros em cada linha. Mas os historiadores nunca podem descartar fontes apenas porque elas são tendenciosas. Você pode não confiar na visão de Rush Limbaugh de Sandra Fluke, mas ele certamente fornece evidências de que ela existe.

A questão não é se as fontes são tendenciosas, mas se fontes tendenciosas podem ser usadas para fornecer informação histórica confiável, uma vez que o joio tendencioso é separado do cerne histórico. E os historiadores têm buscado meios de fazer isso.

Com relação a Jesus, temos numerosos relatos independentes de sua vida nas fontes por trás dos Evangelhos (e os escritos de Paulo) – fontes que foram originalmente escritas em aramaico, a língua nativa de Jesus, e que podem ser datadas dentro de apenas um ano ou dois de sua vida (antes de a religião cristã ser mudada para converter os pagãos). Fontes históricas como essas são bastante surpreendentes para figuras antigas de qualquer tipo. Além disso, temos escritos relativamente extensos de um autor do primeiro século, Paulo, que adquiriu sua informação da vida de Jesus dentro de alguns anos e que sabia, em primeira mão, de Pedro, o discípulo mais próximo de Jesus e de seu próprio irmão Tiago. Se Jesus não existiu, você pensaria que seu irmão saberia.

Além disso, a afirmação de que Jesus foi simplesmente inventado não se sustenta. Os alegados paralelos entre Jesus e os deuses-salvadores “pagãos” na maioria dos casos residem na imaginação moderna. Não sabemos quantos outros nasceram de uma virgem, morreram como expiações pelo pecado e, em seguida, foram ressuscitados dos mortos (apesar do que os sensacionalistas afirmam ad nauseum em suas propaladas versões).

Além disso, aspectos da história de Jesus não teriam simplesmente sido inventados por quem deseja fabricar um novo salvador. Os primeiros seguidores de Jesus declararam que ele era um Messias crucificado. Mas antes do Cristianismo, não havia absolutamente nenhum tipo de judeu que pensava que haveria um futuro messias crucificado. O Messias era pra ser uma figura de grandeza e poder que derrotaria o inimigo. Qualquer um que quisesse inventar um messias faria dessa forma. Por que os cristãos não fariam também? Porque acreditavam especificamente que Jesus era o Messias. E eles sabiam muito bem que ele foi crucificado. Os cristãos não inventaram Jesus. Eles inventaram a ideia de que o Messias tinha de ser crucificado.

Alguém pode escolher repetir as preocupações de nossos menosprezadores culturais modernos e pós-modernos da religião institucionalizada (ou não). Mas, certamente, a melhor maneira de promover qualquer agenda desse tipo é negar o que virtualmente todos os historiadores sensatos do planeta – cristãos, judeus, muçulmanos, pagãos, agnósticos, ateus, o que for – concluíram baseados em uma gama de evidências históricas convincentes.

____________________________

Resenha do livro "Did Jesus Existed?" (Jesus Existiu?) escrito por Bart D. Ehrman, mas ainda não publicado no Brasil. 
Bart Ehrman é um historiador e teólogo norte-americano que tem se destacado como um dos principais estudiosos do cristianismo primitivo, tendo se doutorado pela Universidade de Princeton e atualmente sendo docente da Universidade da Carolina do Norte. Alguns de seus livros já foram lançados em português, como "O que Jesus Disse? O que Jesus não Disse?", "Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?", "Pedro, Paulo e Maria Madalena", "Evangelhos Perdidos", entre outros. Como agnóstico declarado, sua firme posição em assegurar que Jesus existiu causou grande incômodo entre aqueles que negam sua existência.
O texto foi traduzido por Betone Souza e compilado de seu blog.
Veja o texto original em inglês clicando aqui.

20 novembro 2012

AS DIVERGÊNCIAS NOS EVANGELHOS SINÓTICOS

TRÊS DIFERENTES HISTÓRIAS, MAS UM SÓ ENSINAMENTO


Por Alan Capriles

Temos a sorte de haver não apenas um, mas quatro evangelhos canônicos, ou seja, reconhecidos pela igreja como inspirados por Deus. [1] Os três primeiros – Mateus, Marcos e Lucas – são chamados de evangelhos sinóticos, pois apresentam a vida de Jesus seguindo uma sinopse bastante parecida. Quase todas as histórias contadas em Marcos, por exemplo, são também contadas em Mateus e em Lucas. No entanto, isso não significa que haja unanimidade quanto à maneira como estas histórias são contadas. Isso fica claramente demonstrado nos relatos a seguir, onde comparo três passagens paralelas dos evangelhos sinóticos:
“Entretanto, os fariseus, sabendo que ele fizera calar os saduceus, reuniram-se em conselho.  E um deles, intérprete da Lei, experimentando-o, lhe perguntou:  Mestre, qual é o grande mandamento na Lei?  Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento.  Este é o grande e primeiro mandamento.  O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.  Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.” (Mateus 22:34-40)
“Chegando um dos escribas, tendo ouvido a discussão entre eles, vendo como Jesus lhes houvera respondido bem, perguntou-lhe: Qual é o principal de todos os mandamentos?  Respondeu Jesus: O principal é: Ouve, ó Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor!  Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força.  O segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes.  Disse-lhe o escriba: Muito bem, Mestre, e com verdade disseste que ele é o único, e não há outro senão ele,  e que amar a Deus de todo o coração e de todo o entendimento e de toda a força, e amar ao próximo como a si mesmo excede a todos os holocaustos e sacrifícios.  Vendo Jesus que ele havia respondido sabiamente, declarou-lhe: Não estás longe do reino de Deus. E já ninguém mais ousava interrogá-lo.” (Marcos 12:28-34)
“E eis que certo homem, intérprete da Lei, se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que farei para herdar a vida eterna?  Então, Jesus lhe perguntou: Que está escrito na Lei? Como interpretas?  A isto ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.  Então, Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isto e viverás.  Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo?  Jesus prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto.  Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de largo.  Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, também passou de largo.  Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele.  E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele.  No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar.  Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?  Respondeu-lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo.” (Lucas 10:25-37)*
Apesar de retratarem o mesmo acontecimento da vida de Jesus, todos os evangelistas o relataram de maneira diferente. Segundo Lucas, por exemplo, Jesus não respondeu diretamente qual seria o grande mandamento da Lei, mas devolveu a pergunta para o intérprete da Lei, que lhe dá uma sábia resposta. No entanto, para Mateus e Marcos, é o próprio Jesus quem responde imediatamente a questão. Ora, qual dos dois deu a resposta? Não há como se conciliar essa questão. Mas vejamos ainda como a mesma história tem desfechos diferentes, segundo o relato de cada evangelho.

Em Mateus a história termina mais abruptamente, com Jesus apenas acrescentando que “Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” – revelação que, aliás, não consta dos demais evangelhos. Marcos, por outro lado, acrescenta que o escriba teria comentado a resposta de Jesus e que este, vendo “que ele havia respondido sabiamente, declarou-lhe: Não estás longe do reino de Deus.” Esse é o final da história para Marcos, o qual apenas acrescenta que “já ninguém mais ousava interrogá-lo.”

Em Lucas, como já foi dito, Jesus não responde diretamente a pergunta, mas a devolve para o intérprete da Lei, que acaba respondendo a questão por ele mesmo levantada. Jesus apenas avalia que sua reposta foi correta e acrescenta: “Faze isto e viverás”. Mas, ainda segundo Lucas, o intérprete da Lei “querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo?” – uma nova questão, que resulta na famosa parábola do bom samaritano. Mas o diálogo ainda prossegue, com Jesus lhe perguntando, ao final da parábola: “Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo”.

Pois bem, não há como se negar que temos aqui três histórias diferentes. E provavelmente jamais saberemos o que realmente aconteceu: se foi Jesus quem deu a resposta (Mt e Mc) ou se foi o intérprete da Lei (Lc); se houve apenas essa pergunta (Mt) ou se o diálogo se prolongou um pouco mais (Mc) ou muito mais (Lc); se o escriba fez um comentário que foi elogiado por Jesus (Mc), ou se foi o contrário (Lc); se Jesus disse para o intérprete da Lei “não estás longe do reino de Deus” (Mc) ou se disse “faze isto e viverás”(Lc), ou se não disse mais nada (Mt). Não temos como saber os detalhes do que realmente ocorreu. E também não é possível juntar as três histórias em uma só, como você mesmo poderá comprovar.

Mas será que esses detalhes têm alguma relevância quanto ao ensino por detrás dessas histórias? Definitivamente não! Apesar de não sabermos com exatidão o que aconteceu, o fato é que nas três histórias o ensino permanece o mesmo. Esse é apenas um exemplo dentre vários outros que encontramos na leitura comparativa dos evangelhos. E a conclusão será sempre a mesma, a saber, a de que as histórias contém divergência nos detalhes, porém não nos ensinamentos.

Como pode ser isso? Por que motivo há divergências entre os evangelhos, ainda que sejam nos detalhes? A resposta é tão simples que corremos o risco de não considerarmos suas implicações.

As evidências indicam que os acontecimentos ocorridos no ministério público de Jesus não foram imediatamente colocados no papel. Algum tempo teria se passado até que algum discípulo começasse a escrever a respeito do que Jesus disse e do que ele fez. Quanto tempo? Semanas? Meses? Anos? Tenho minhas dúvidas, mas o fato é que a maioria dos estudiosos do assunto assevera que décadas se passaram entre a crucificação de Jesus e a escrita do primeiro evangelho.  Enquanto isso, os ensinamentos de Jesus e as histórias sobre Jesus eram contados de boca, naquilo que os eruditos chamam de tradição oral. Um desses eruditos, por exemplo, concluiu sua pesquisa sobre o assunto com a seguinte consideração:

“Com efeito, não há nesse trabalho a presunção de se identificar por meio de quem as tradições de e sobre Jesus foram transmitidas até o momento em que começaram a ser vertidas por escrito por autores igualmente anônimos. Pois, mesmo que tenham se iniciado com o apóstolo Pedro, ou com familiares de Jesus de Nazaré, é crucial ter em conta as armadilhas da memória.” [2] 

O que esse pesquisador está afirmando, em outras palavras, é que mesmo que as fontes para a escrita dos evangelhos tenham sido testemunhas oculares, essas mesmas testemunhas podiam se equivocar quanto a detalhes dos acontecimentos. De fato, isso explicaria as divergências entre as três histórias que acabamos de analisar – e as demais divergências entre os evangelhos. Se a teoria estiver correta, cada um dos evangelistas teria sido influenciado por diferentes tradições orais que buscavam relatar a mesma história. Como se diz, “quem conta um conto, aumenta um ponto” (e às vezes omite ou até muda um ponto). Felizmente, como ficou demonstrado, os pontos acrescentados ou omitidos não alteraram o cerne da mensagem, que é o amor. 

Mesmo que os autores de Mateus e Lucas tenham se utilizado de Marcos como fonte para seus evangelhos, como creem os eruditos, eles podem ter alterado algumas histórias, não por má fé, mas segundo a influência de outras testemunhas que entrevistaram, ou de tradições orais que já conheciam. 

Como se não bastasse, nenhum dos quatro evangelhos foi escrito por historiadores. Sendo assim, eles não estavam buscando a exatidão histórica quando organizaram os ensinamentos de Jesus, mas sim a maneira mais apropriada para se facilitar sua memorização e meditação. Isso explicaria porque a ordem dos acontecimentos muda em cada um dos evangelhos. Quando o autor de Lucas, por exemplo, tomou conhecimento da parábola do bom samaritano (que não é contada nos outros evangelhos), o melhor lugar que ele encontrou para ela foi inseri-la no contexto do maior mandamento na Lei. 

Portanto, não devemos ler os evangelhos buscando exatidão histórica, mas revelação teológica. Quando nos apercebemos disso, os temores se dissipam, as peças se encaixam e podemos descansar na certeza de que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade.” 

Alan Capriles

* Todos os relatos bíblicos na versão Almeida Revista e Atualizada – SBB .
____________________________________

Notas:

[1] Digo que temos sorte por haver quatro evangelhos na Bíblia Sagrada porque, caso tivéssemos apenas um relato canonizado, dependeríamos da arqueologia ou de alguém encontrar por acaso os fragmentos dos demais evangelhos, tal como ocorreu em 1945, quando evangelhos “apócrifos” foram encontrados em Nag Hammadi.

[2] “Quem vos ouve, ouve a mim”: Oralidade e Memória dos Cristianismo Originários / Lair Amaro dos Santos Faria – Rio de Janeiro: Kline 2011. Pág. 128