NÃO É BEM ASSIM

O espantoso desprezo dos cristãos aos ensinamentos de Cristo

 

Por Alan Capriles

Quanto mais reflito no evangelho de Cristo, menos identifico-me com as religiões que se dizem cristãs. O problema nem está no fato de que cada denominação tenha uma confissão de fé diferente da outra, pois compreendo que há diferentes interpretações acerca de assuntos teológicos. Mas o que realmente me incomoda é o desprezo que todas parecem dar aos ensinamentos mais claros e diretos deixados por aquele a quem chamam de Senhor. É bem verdade que o nome mais repetido nos cultos é o nome de Cristo. Mas uma coisa é dizer “glória a Jesus!” ou “em nome de Jesus!” e outra, muito mais relevante, é conhecer a esse Jesus – especialmente conhecer o que ele nos ensinou, tanto por palavras quanto por ações.

Temos a tendência de ignorarmos aquilo que não compreendemos e a maneira mais sutil de fazermos isso é desviando nossa atenção para algo que pareça louvável. Propositalmente ou não, o fato é que a própria Bíblia tem sido usada para nos distrair, desviando nossa atenção acerca daquilo que Jesus nos ordenou fazer. Culto após culto, ensina-se a ser próspero como Salomão, vitorioso como Davi, destemido como Josué, mas despreza-se os ensinamentos de Jesus, o qual deveria ser a figura central das Escrituras – mas que, na prática, não tem sido. Ao menos, não na maioria das igrejas que se dizem cristãs.

Ora, a missão da igreja não é somente batizar, mas principalmente transmitir os ensinamentos de Cristo, pois somente assim nos tornamos seus discípulos. Mas o bloqueio mental é tão grande, que até mesmo quando se prega sobre a grande comissão, a referida ordem costuma ser dita pela metade: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo...” Ah, e o restante do texto? Não deve ser tão importante, não é mesmo? Quase ninguém se lembra dele, que diz expressamente:

“... ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado.” (Mateus 28:20)

E não venham me dizer que a Escola Bíblica Dominical cumpre esse papel, porque, via de regra, não cumpre! A começar pelas crianças, geralmente ensina-se na EBD sobre as histórias de Adão, Abel, Noé, Moisés, Jonas, entre outras narrativas bíblicas; para os jovens ensina-se sobre louvor, namoro, drogas e demais assuntos dessa faixa etária; e para os jovens e adultos ensina-se sobre pecado original, trindade, batalha espiritual, vitória financeira, eclesiologia, ou qualquer outro assunto teológico. Não estou desmerecendo o estudo desses temas, mas apenas ressaltando que priorizamos o ensino daquilo que não é a missão da igreja. O que Jesus realmente nos ordenou cumprir, isso raramente é ensinado, seja nos cultos, seja nas classes de escola bíblica. A única explicação que encontro para tamanho absurdo é a desconcertante simplicidade e incômoda dificuldade que os ensinamentos de Cristo apresentam, como veremos a seguir.

A começar pela dificuldade, usarei como exemplo um versículo no qual encontramos uma importante advertência do Senhor:

“Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo.” (Mateus 5:22)

Não é por acaso que os colchetes aparecem no versículo acima. As palavras “sem motivo” foram acrescentadas, séculos atrás, por algum copista que provavelmente achou Jesus radical demais e tentou dar uma aliviada no seu ensinamento. Como se sabe, os manuscritos bíblicos eram copiados à mão (por isso são chamados de manuscritos!) e, nesse processo, erros poderiam ocorrer. Nesse caso, não foi um erro, mas um acréscimo deliberado. Não é difícil imaginar que esse copista irava-se facilmente e, como não gostava da ideia de que o vissem como candidato ao fogo do inferno, decidiu então alterar o texto. Ora, é muito mais fácil mudar o texto do que mudar de postura. E foi o que ele fez, dando margem para que todas as cópias desse manuscrito perpetuassem o erro. Para nossa sorte, manuscritos mais antigos, que antecederam essa adulteração, foram descobertos e revelaram a ausência de frases que agora, nas versões modernas, aparecem entre colchetes, como na edição Almeida Revista e Atualizada.[1] Ora, se os melhores manuscritos do evangelho de Mateus não trazem as palavras “sem motivo”, ocorre que ficamos sem desculpas para ficarmos irados, ou xingarmos alguém – prática muito comum entre crentes na internet, diga-se de passagem.

Usei o versículo acima para tratar da dificuldade que alguns ensinamentos de Cristo apresentam, porque é um exemplo com evidências internas, onde o próprio texto revela que alguém tentou alterá-lo – alguém que pensava da seguinte maneira: “Jesus nos ensinou a não nos irarmos, mas não é bem assim... Você pode irar-se, desde que seja por um bom motivo.” Bem, esse tipo de adulteração continua sendo tão comum hoje quanto foi nos primeiros séculos depois de Cristo. Recentemente, por exemplo, houve uma polêmica quanto ao mandamento de “dar a outra face”, protagonizada por um famoso cantor gospel, o qual declarou orientar seu filho exatamente de forma contrária da que Jesus nos ensinou. Ele se diz cristão, mas, quanto a esse ensinamento de Cristo, não é bem assim...[2]

Como se vê, quando alguma orientação de Jesus parece difícil demais para ser seguida, logo se encontra uma interpretação que difere daquilo que tão claramente está sendo dito. Outro exemplo é o enfático “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra” (Mt 6:19). O que poderia ser mais claro e óbvio nesse versículo do que o fato de que o Senhor está nos proibindo de enriquecermos? Mas, a despeito disso, ensina-se nas igrejas que a vontade de Deus é que sejamos ricos, não de misericórdia e compaixão, mas de dinheiro mesmo – e muito dinheiro! Versículos tais como “contentai-vos com o que tendes” ou “ai dos que querem ser ricos” são reinterpretados por adeptos da famigerada teologia da prosperidade: “Sim, é verdade que está escrito isso, mas não é bem assim...”[3]

Ensinamentos de Cristo são reinterpretados não somente por sua incômoda dificuldade, mas também pela desconcertante simplicidade. Por exemplo, Jesus me parece bastante claro e direto com as seguintes afirmativas:

“Se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará”
(Mateus 6:14)

“Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados” (Lucas 6:37)

Está evidente que o Senhor está falando a respeito de um caminho (proceder) que conduz à salvação, ou ainda, que é o próprio caminho da salvação. E que ninguém pense que é um caminho fácil! Tendo isso em mente, propus a seguinte questão aos jovens alunos de minha classe de escola bíblica: “Então, segundo Jesus, qualquer um que praticar a tolerância e o perdão ao próximo receberá o perdão de Deus e, consequentemente a vida eterna?” Houve um breve momento de silêncio, quebrado por uma visitante, que congrega numa igreja tradicional: “Não! É preciso primeiro aceitar Jesus como Senhor e Salvador.”

Ora, mas Jesus não disse isso! Não dessa forma banal como costuma interpretar-se, na qual se divorcia Jesus dos seus ensinamentos.[4] O que essa jovem respondeu foi inculcado em sua mente por nossa teologia protestante, mas não pelo Senhor. O mais incrível é que nem mesmo o fato de haver uma abundância de outros versículos que confirmem a simplicidade da salvação (o que não deve ser confundido com facilidade, pois o caminho do amor é apertado) nem mesmo assim os cristãos aceitam essa verdade:

“Amai, porém, os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem esperar nenhuma paga; será grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo. Pois ele é benigno até para com os ingratos e maus.” (Lucas 6:35)

“Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo. Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me. [... Pois] sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.” (Mateus 25:34,40)

“Porque o juízo é sem misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia. A misericórdia triunfa sobre o juízo.” (Tiago 2:13)

“Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele.”
(1 João 4:16)

E por que não aceitam essa verdade? Talvez porque a verdade não seja tão atraente quanto um complexo sistema de regras religiosas, ou tão fácil quanto crer que a salvação dependa de uma certa crença, ou de uma determinada confissão.[5] Já escrevi uma tese (prefiro chamar de tese, para diminuir a polêmica) explicando que aceitar a objetividade de versículos como esses não significa atribuir salvação pelas obras.[6] Uma coisa não tem nada a ver com a outra, e a dificuldade em se compreender isso decorre, em parte, da confusão que se faz entre fé e crença – algo acerca do que também já escrevi.[7]

O fato é que a doutrinação religiosa pela qual passamos nos faz acrescentar nossas crenças a quase tudo que Cristo ensinou. Veladamente, acrescentamos nossos próprios “colchetes” em versículos que são simples e diretos demais para que os aceitemos. Por exemplo, no último versículo acima, não conseguimos compreender com clareza o que está sendo dito, pois não se encaixa com nossa teologia. O que conseguimos ler é o seguinte:

“Deus é amor, e aquele [cristão evangélico] que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele.” (1 João 4:16)

Entenda-se por cristão evangélico alguém que passou pelo processo de confessar a Cristo como Senhor e Salvador. O mesmo acréscimo, onde colocamos colchetes mentais, se faz com outras passagens das Escrituras, tal como esta:

“Se sabeis que ele é justo, reconhecei também que todo aquele [cristão evangélico] que pratica a justiça é nascido dele.” (1 João 2:29)

Ou esta:

“Bem-aventurados os [cristãos evangélicos] misericordiosos, porque [somente os cristãos evangélicos] alcançarão misericórdia.” (Mateus 5:7)

Onde se lê cristão evangélico poderia se ler também católico, ou protestante reformado, ou adventista, ou testemunha de Jeová, ou mórmon, ou qualquer outro rótulo de um sistema religioso que arrogue para si mesmo a exclusividade da salvação. E não me admira que isso aconteça. Nosso cristianismo está soterrado sob séculos de teologia – uma teologia que impede seus adeptos de enxergar a simplicidade do que Cristo nos ensinou. Ora, essa simplicidade trás consigo uma dificuldade prática - mas é exatamente por isso que o Senhor alertou ser apertado o caminho da salvação. Lamentavelmente, a grande maioria dos cristãos prefere ignorar essa dificuldade, sendo seduzidos por uma teologia deformada, que os atrai para uma doutrina que os declare salvos por uma confissão, ou por determinada crença.

Meu propósito, com textos como esse e outros que venho escrevendo, não é que você deixe sua igreja, embora reconheça que, às vezes, isso é mesmo necessário.[8] Mas tenho uma esperança. Minha esperança e propósito é que haja um despertamento espiritual em todos aqueles que se dizem cristãos. Um despertamento que os faça enxergar que o nosso cristianismo tornou-se uma versão moderna do farisaísmo que Jesus combatia.[9] Um despertamento que nos faça realmente voltar ao evangelho, e não aos princípios de uma reforma medieval. Um despertamento que nos leve a uma releitura de tudo o que Cristo nos ensinou e a um exame de nossa conduta. Mais do que isso, um despertamento que nos leve a praticar o que ele ensinou – não para que nos achemos melhores do que os outros, ou para que nos separemos em novas denominações, mas para que sejamos como ele, sendo simplesmente filhos de Deus.[10]

Não é bem assim? ...Ou é?

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NOTAS
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[1] Algumas novas versões já eliminaram por completo as frases que não aparecem nos manuscritos mais antigos, os quais são considerados mais fiéis aos originais pela maioria dos especialistas no assunto.

[2] Gravei um vídeo em relação ao assunto, o qual pode ser conferido clicando-se aqui.

[3] Também já escrevi e preguei acerca da teologia da prosperidade. Clique aqui e confira.

[4] Confira o texto "O que significa aceitar Jesus" e a pregação com o mesmo título.

[5] Confira o texto "Confessa com a tua boca - a estranha doutrina do confessionalismo".

[6] Confira o texto "A salvação segundo Jesus Cristo - e não segundo o cristianismo"

[7] Confira o texto "A crucial diferença entre crer e ter fé", bem como a pregação "Fé ou crença".

[8] Confira "Igrejados, desigrejados e o que realmente importa"

[9] Confira o texto "Discípulos de Cristo ou discípulos de cristianismo?" e a forte pregação com o mesmo título.

[10] Confira "Simplesmente filhos de Deus".

Alan Capriles

Comentários

HP disse…
Glórias a Deus!
Louvado seja o Senhor!

Meu amado pastor e amigo, que felicidade ler este teu texto. Meu peito se infla de alegria e glórias ao Altíssimo!

Que o Evangelho, que escandaliza a muitos, NUNCA saia da tua boca. É o que peço a Deus em nome de Jesus!

Deus te abençoe grandemente. E que TODA a Glória seja dada a Deus!

Amém e amém.
Alan Capriles disse…
Amém, Henrique!

Fico muito feliz que você tenha gostado do texto. Se puder, ajude-me a divulgá-lo.

Deus lhe abençoe cada dia mais!

Um forte abraço, amigo!
Graça e paz!

Estou conhecendo seu blogue hoje a admiro a maneira profunda e embasada como o irmão abordou os assuntos aqui tratados. Tanto nesta postagem como em outras.

Aproveito a oportunidade para lhe desejar um ótimo descanso semanal com muita paz.

Em Cristo,

Rodrigo Phanardzis Ancora da Luz
Anônimo disse…
A Bíblia Sagrada dá dois tipos de visão em Deus.
·Visão religiosa
·Visão espiritual
Aqueles que tem uma visão religiosa sempre verá como "Bíblia Sagrada" ou "Escrituras Sagradas" o Verbo que descrever o Amor. Quem é religioso ama a Deus por medo, e não por amor, nunca vai compreender que Deus amou a Esaú como amou a Jacor, que Deus amava todas as pessoas que foram mortas no dilúvio assim como amou a noé, e nunca vão comprender que o amor de Deus pelos que crucificavam a Cristo era o mesmo com os que choravam com a sua crucificaçao. Os religiosos não compreendem que Deus não se "ira" que não se "arrepende" que não é "justiceiro", não compreendem que Deus é Pai, essa é a visão de um religoso só consegue amar o próximo da sua denominacão, só consegue dá o que tem sobrejando, ou pior dá o dízimo para receber uma bênção material. Mas não é assim quem ver Deus como Pai, quem compreende que o amor de Deus é incondicional, quem ver as suas palavras como espirituais para vida e não como carnais para enquando ser vive terrenamente, pessoas que compreendem que no final só haverá o amor reinando em tudo e em todos, que no final de todas as coisas onde houver vida reinará somente o amor. Compreender que Deus é amor, que Cristo era o amor encarnado e que nós ensinou esse caminho, essa verdade que liberta das trevas para vida eterna é muito simples, e ser não fosse não seria o evangelho...basta ter uma visão espiritual de toda bíblia sagrada para perceber que no final só restará o AMOR.